A Frente Parlamentar da Cannabis Medicinal e do Cânhamo Industrial promoveu, nesta quinta-feira (23), uma audiência pública para debater o uso veterinário de canabinóides. O evento, realizado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, reuniu médicos veterinários, representantes de conselhos profissionais, pesquisadores e associações que discutiram a regulamentação da prescrição e alternativas para a compra dos produtos.

“A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] já amparou de forma legal, então, desde o ano passado, os veterinários já estão autorizados a prescrever os produtos. A Frente Parlamentar pensa em difundir o tema e apresentar práticas clínicas que já acontecem”, disse o coordenador da Frente, deputado Caio França (PSB).
Em outubro de 2024, a Anvisa editou uma portaria que deu a possibilidade a médicos veterinários de prescreverem medicamentos à base de Cannabis. A medida abre portas para que o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) regulamente os produtos para uso veterinário. Apesar disso, o vice-coordenador da Frente, deputado Eduardo Suplicy (PT), afirmou que o tema carece de avanço regulatório. “Estarei atento para buscar formas de viabilizar a legalidade dessas iniciativas”, afirmou ele.
Regulamentação
O presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV) do Distrito Federal, Rodrigo Montezuma, contou sua experiência como liderança pela regulamentação da prescrição de produtos à base de Cannabis. Como também é advogado, Montezuma explicou que havia um “vazio legislativo” no tema e muita insegurança jurídica para os profissionais. “Sem regulamentação, o médico veterinário poderia ser enquadrado na Lei de Drogas”, apontou.
Com isso, ele começou a articulação junto à Anvisa para que fosse possível não só a prescrição, mas também que pacientes e tutores pudessem ter acesso aos medicamentos. “Toda essa luta é para garantir o tratamento para os animais, segurança jurídica na prescrição por médicos veterinários dentro de suas prerrogativas profissionais e para que o proprietário responsável alcance os produtos.”
Benefícios
Durante a audiência, os especialistas apontaram que a Cannabis medicinal possui diversos benefícios terapêuticos, como ação analgésica, anti-inflamatória, antioxidante, imunomoduladora e calmante, diminuindo o estresse de animais confinados. A presidente da Comissão de Endocanabinologia do CRMV-SP, Kátia Ferraro, contou que trabalha com equinos e aplica a substância. “Eu atuo com cavalos de esporte e todo atleta tem muita dor, seja ele humano ou veterinário, e esses medicamentos funcionam muito bem”, comentou.
Kátia ainda contou casos de pacientes que fizeram o uso de canabinóides para regulação do temperamento de cavalos. “A Cannabis mudou a relação da tutora com a égua. Ela já não tinha mais prazer em montar, não ia mais para provas porque a égua era brava e se assustava. Receber um relato falando que agora elas vão para a prova felizes e a égua gosta de estar com ela não tem preço”, disse.
Rodrigo Montezuma disse que existem inúmeros casos de gatos, cachorros, animais com doenças terminais ou convulsivas que tiveram uma ótima resposta ao tratamento com Cannabis. “Privar os animais desse tipo de substância e dos benefícios que ela alcança é simplesmente configuração de maus-tratos, uma vez que existe uma possibilidade terapêutica para tratá-los”, afirmou.
Acesso
Apesar da liberação da prescrição, os presentes relataram uma grande dificuldade de acesso aos produtos à base de Cannabis. Atualmente, há apenas um medicamento regulamentado no Brasil para uso humano e nenhum para uso veterinário. “A gente só está alcançando produtos de associações, que também precisam de segurança jurídica”, defendeu Montezuma.
Kátia fez coro ao relato do colega explicando que poucos médicos veterinários têm a permissão para comprar medicamentos de farmácias, além de serem muito mais caros. “Seguimos usando o óleo de associações que são de suma importância para o médico veterinário. Quebramos muitos paradigmas por causa delas.”
Representando uma das entidades que trabalham no tema, a presidente e fundadora da Indica – Inclusão, Diversidade e Cannabis para Animais, Ana Carolina Campedelli, criticou a demora na regulamentação de produtos pelo Mapa.
“A burocracia e a inércia do Estado muitas vezes são sentenças de sofrimento e morte”, disse. A Indica conta com uma rede de mais de 300 veterinários e atende 6 mil animais. “As associações nasceram da coragem e da compaixão e vivemos um ato de desobediência civil pacífica, porque não podemos virar as costas para a dor”, completou.
Solidariedade
A audiência ainda foi marcada por diversas manifestações de solidariedade à associação de Cannabis medicinal Santa Gaia, que foi alvo, na última quinta-feira (16), de um mandado de busca e apreensão cumprido pela Polícia Civil de São Paulo na cidade de Lins. Medicamentos e materiais de cultivo foram apreendidos, e o presidente da entidade, Guilherme Viel, está preso desde então.
“A associação sofreu uma ação truculenta e completamente desproporcional. Sabemos como as associações são importantes para democratizar o acesso a produtos tão caros num país como o nosso”, disse Caio França.
Suplicy foi outro a demonstrar apoio a associação que atende mais de 9 mil pessoas, “incluindo crianças com epilepsia, autismo e idosos com parkinson, entre outras enfermidades”. “Vai condená-los à interrupção abrupta de seus tratamentos e a um sofrimento evitável”, comentou o deputado.
A Santa Gaia enviou um manifesto à Frente Parlamentar sobre o caso, no qual afirma que “três anos de trabalho ético e cuidadoso foram destruídos em poucas horas” e que “as associações precisam de mais atenção e proteção do Poder Público”. O documento será encaminhado, junto a uma manifestação da Frente Parlamentar, ao governador Tarcísio de Freitas, ao secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, ao delegado-geral da Polícia Civil, Artur Dian, e ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região.